Minha relação com Fatal Fury 2 é engraçada. Eu era um jovem pré-adolescente de 12 aninhos quando viajei para Itanhém com meus pais e cai numa bela (e surpreendentemente livre de atividades infantis) pousada a beira mar. Lembro, no entanto, que era um prédio de dois andares de tijolinho.
No entanto, ficou rapidamente óbvio ao meu pai, com um filho de 12 e um filho de 6, que as acomodações simplesmente não providenciavam qualquer nível de entretenimento para crianças. Os quartos eram bacanas, mas não tinham TV (embora havia salas de TV no hotel), enquanto as piscinas eram fundas demais para serem usados pelo meu irmão e por mim. Adicione a isso uma bela infecção de garganta que pegou meu irmão na pousada/hotel/casa do assassino do “silêncio dos inocentes”. Esses foram 5 dias de férias que meus pais realmente não puderam aproveitar.
Visto que o Erick não podia se molhar (o mar então estava fora de cogitação) e meus pais não dispunham de maneiras de simplesmente nos colocar em criogenia até o retorno ao lar (teriam usado se tivessem), se viram em uma situação. Dois adultos teriam que tentar agora todos os meios possíveis para entreter duas crianças em um hotel numa cidade cuja principal atração turística é uma faixa de areia que encontra trilhões de litros de água.
Como posso não ter deixado claro, não sou um enorme fã de praias. Ou de água na qual não consigo enxergar o fundo. Ou de lugares que podem ou não manter Yog-Sothoth lá no fundo.
Para a sorte dos meus pais havia um estabelecimento de arcade numa das ruas paralelas, não mais do que duas quadras do Hotel. O lugar não era exatamente um shopping Center Norte, mas tinha umas 15 máquinas, todas stand up (aqueles em que se joga de pé) com jogos variados e, eu acho, uma máquina em que você sentava numa motocicleta. A loja não vendia bebidas ou cigarros, de forma que meu pai considerou seguro o suficiente para, nos momentos que um Erick cansado quisesse voltar ao hotel, me deixar ali. A máquina mais nova, e mais cheia de gente, era Fatal Fury 2.
É claro que indo lá, basicamente, todos os dias por uma semana, e falando mais do que a boca eu fiz amizade com o dono e os outros moços que ali trabalhavam. Apresentei meu pai, meu irmão e eles me mostraram como era por dentro dos arcades e me deixavam sentar num banquinho de madeira mesmo quando eu não estava jogando. E foi desse banquinho que eu assisti horas de molecada tendo a vergonha removida por uma extremamente difícil MVS com o supracitado Garou Densetsu Ni (a lenda do lobo dois – Fatal Fury 2 para os norte-americanos).
Sim! Eu consegui jogar pacas! Sim! Foi muito bacana! Não! Eu nunca consegui ir muito para frente no jogo!
E, sendo mega clichê, gosto de usar o Terry!
Meu irmão gosta do Andy (juro que nunca combinamos isso… só ocorreu).
O jogo era incrível, era lindo, chamava a atenção e os movimentos eram muito legais. Meu contato com Fatal Fury 1 tinha sido apenas em revistas, até aquele momento, o que só tornou o impacto de Fatal Fury 2 ainda maior.
Aqueles dias na praia acabaram, voltamos para a casa – vida que segue. Mas com Fatal Fury 2 registrado lá no fundo da minha cabeça.
O ano de 1994 finalmente chegou! E com ele a Takara lançou duas versões de Fatal Fury, no mesmo ano, para o SNES, num movimento completamente irracional e que não faz sentido até hoje: Fatal Fury 2 e a versão vitaminada dela, Fatal Fury Special.
De qualquer forma em 1994 eu morava numa pequena cidade do interior do estado de São Paulo onde todo mundo conhece todo mundo. Lá também vive um homem… cujo nome não comentaremos aqui. Aliás não posso falar o apelido também. Vamos chamá-lo de … “Paraguai”.
O Paraguai era um senhor, na época de meia idade, que vivia na pequena cidade onde eu residia, em um bairro de poder aquisitivo um pouco mais limitado, e tinha uma história extremamente colorida.
Segundo as testemunhas da cidade o homem fora funcionário público, com esposa e filhos, mas “desandou”. Aparentemente o cidadão se meteu em “escândalo” e acabou colocado “no olho da rua” – como diz o dialeto local. Eu nunca consegui levantar exatamente qual crime, ou erro crasso, ou desvio de verba, ou convocação de Bahamut no meio da reunião o Paraguai cometeu.
Independente do o motivo o nosso amigo Paraguai precisava fazer algo para sobreviver. Tentar um novo concurso público era uma porta fechada pela ficha policial, de forma que ele se voltou a um trabalho que, até aquele momento era realizado apenas por uma professora de matemática da cidade… Ele iria para o Paraguai, semana sim, semana não, para trazer produtos encomendados. Sim.. o Paraguai virou muambeiro.
Eu tinha dois amigões, de infância mesmo, um chamado Sérgio e o outro Marcelo, irmãos, que moravam na proximidade do Paraguai, e dele compravam uma infinidade de produtos – principalmente jogos de videogame. Uma parte eles revendiam enquanto outra trocavam pelos jogos que o Paraguai não havia conseguido localizar para eles (como jogos que contam com chips especiais ou bateria de save).
E, talvez por já gostar inicialmente, ter um tempo livre, evitar ter que sair na rua, por trabalhar com isso, ou um misto bizarro de todas as razões citadas, o Paraguai jogava videogame. O homem tinha uma TV bem legal, e tanto o Marcelo quanto o Sérgio costumavam ir a casa dele para testar jogos, ou só ficar lá, de boa, jogando.
Eu nunca havia ido a casa do Paraguai. Encontrei o Sérgio na banca (Sim! A Banca! Só tinha uma!) e enquanto folheávamos as revistas de games novas o Sérgio me falou, como quem não quer nada, que o Paraguai tinha conseguido uma cópia de Fatal Fury 2.
Eu tinha que ver isso. Eu tinha que jogar isso.
Queríamos comprar o cartucho, mas não tínhamos a grana. O Sérgio mencionou que poderia conversar com Paraguai para pagar depois. Eu sempre tive problemas em ficar devendo dinheiro e não queria, de jeito nenhum, assumir uma responsabilidade que poderia não conseguir cumprir depois. Assim, naquela hora, soltei um “__ Ahhh… deixa quieto… preciso esperar juntar uma grana” ao que ele respondeu:
“__ Que hora que você tá livre hoje? Passa lá em casa que jogamos lá!”
Fui para a casa, almocei, fiz o dever e corri para a casa dele. Chegando lá ele, o irmão dele e eu rumamos para a casa do Paraguai, que era ali perto.
E eu não vi problema algum nisso. Me lembro claramente de que eu fiquei preocupado em incomodar o homem. Mas, em nenhum momento me ocorreu o risco de violência de qualquer espécie durante a visita a um homem que havia, em algum momento do passado, tido um, ou mais, incidentes violentos envolvendo a própria família. 14 anos – vai entender….
Enquanto isso, longe dali, daquela maneira inconveniente que as cidades pequenas têm, alguém ligou para meu pai e para a minha mãe, para avisar que eu estava entrando na casa de um, suposto, criminoso.
Meus pais não conheciam a história completa e provavelmente a informação deles é tão alquebrada, exagerada e mentirosa quanto a que eu tenho de formas que papai falou com mamãe e ambos ficaram bem preocupados com a situação. A solução deles? Despachar meu pai, de carro, para me buscar na casa do Paraguai.
Operação “Seu Douglas resgata o imbecil do filho dele que foi na casa do Paraguai”.
Enquanto isso, na casa do Paraguai… O Sérgio disse que viemos para ver o Fatal Fury 2, ao que o Paraguai só meneou a cabeça como quem quisesse dizer “Esse eu não vou vender”. Antecipando isso o Sérgio completou que “__ O Marcel quer ver para talvez encomendar um para ele”. O homem fez um grunhido apontando o SNES e deu o cartucho para o Marcelo. Sentamos na frente da TV, colocamos o cartucho, pegamos dois controles e começamos a testar o jogo. E era bom! Era muito bom!
Nós três conversávamos sobre o jogo e o homem permanecia ali – olhando para nós, no mais absoluto silêncio. Sim! Eu fui completamente burro eu não perceber a tensão da situação! Não foi um dos meus melhores, e mais brilhantes, momentos.
De repente ouvimos alguém chamar firmemente o nome do Paraguai lá fora. Eu sabia que era a voz do meu pai, foi então que pausei o jogo, e fui saindo, com o Paraguai e os dois irmãos lá para fora. Óbvio que meu pai usava o nome completo do homem, e não o apelido, bastante horrível, que o Sérgio usava para nomear o cara. Mas, era visível, no rosto e nos trejeitos do cara, que ele estava incomodado com alguém chamando-o no portão.
Meu pai se apresentou e disse que viera me buscar, dizendo algo furado relativo ao horário da catequese. Eu, a época, não percebi qualquer risco, mas vendo a alteração do Paraguai, comecei a caminhar na direção do portão. O Paraguai meio que colocou o corpo no caminho e soltou para o meu pai que eu estava ocupado e que depois eu iria.
Meu pai é um homem muito pacífico. Ele sorriu e sem parar de sorrir, olhou para o Paraguai, chamou-o pelo nome numa voz calma e mansa e falou “__ Ele volta depois. Fica sossegado. Só vou levar ele lá para ele não perder a hora”.
O homem então sorriu, um sorriso bem falso e denteado, ao meu pai, passou a mão envolta dos meu ombro e meu puxou para frente, me levando de trás dele para a frente, e gentilmente me colocando na direção do meu pai. Ele falou algo sobre continuar brincando com os outros amigos e deu um ligeiro empurrãozinho nas minhas costas que me colocou para andar. Eu cheguei perto do meu pai que só olhou para mim com uma cara de “Calma campeão! Fica quieto mais cinco minutos que saímos dessa!”. Sim… meu pai tem olhos bem expressivos.
Conforme o carro começou a andar eu fiquei em silêncio, esperando a porrada e meio receoso do que havia feito errado.
Ele continuou em silêncio por mais uns minutos e depois me perguntou “__ Por que você foi lá?”
“__ Para jogar Fatal Fury 2”
“__ Não dava para jogar em outro lugar?”
“__ Não… eu ia jogar no Sérgio mas ele disse que tinha que ir lá”
Ele fez um “uhum” para dentro e mexeu a cabeça devagar. Aí, com a calma das eras, ele falou:
“__ O pai não quer que você vá mais lá, ok? E quer que você tenha cuidado com esse moço. Esse moço precisa de ajuda e, até ele ter, pode ser perigoso para você e para sua turma. Você me entendeu?”
Eu fiz um sim com a cabeça e fiquei pensando nisso um tempão. Minha mãe, do jeito dela, me deu um escaldo, com direito a um beliscão, pela preocupação que eu tinha causado. A locadora teve Fatal Fury 2 pouco tempo depois e eu acabei meus dias naquela pequena cidade sem nunca voltar a casa do Paraguai por qualquer razão que fosse.
Infelizmente, nossa história, dessa vez, não tem um final feliz. Entrei em contato com o pessoal da pequena cidade para ver qual era a do nosso protagonista. Sem surpresas, depois de uma longa história de brigas na rua, gritarias, passagens pela polícia e problemas com os vizinhos, o Paraguai se envolveu numa briga. Dessa vez, mesmo portando o canivete, ele acabou descobrindo que metal e órgãos internos, não combinam – falecendo no incidente.
E daí tiramos uma lição. Aliás duas.
- Eu tinha zero senso de auto preservação na infância;
- Nós metemos em enormes frias para jogar as coisas que queremos;
A primeira eu resolvi. A segunda… acho que vou morrer sem resolver. Valeu galera! Tchau Tchau!
Texto escrito por Marcel Bonatelli