Era 1993, e eu me lembro de ter aulas de inglês à tarde. Às vezes, deixava o videocassete gravando o filme da Sessão da Tarde. Outras vezes, deixava um jogo pausado no meu velho e bom Micro Genius (um clone do Nintendinho). A escola de inglês onde eu estudava tinha um cheiro peculiar de giz, café requentado e móveis que pareciam saídos diretamente de um escritório do governo.
 
Eu já era um pequeno visionário, mas também um grande encrenqueiro — pelo menos na visão da minha professora, Sheila. Sheila era o tipo de professora que transformava uma simples correção de pronúncia em um discurso sobre honra e disciplina. Baixa, com cabelo solto e cacheado, sempre usava batom vermelho. Por trás daquela figura séria, porém, havia uma rivalidade não declarada comigo.
 
No outro extremo, estava Ana Maria — a professora substituta ocasional, que todos chamavam de “tia Ana”. Gentil, com um sorriso constante e uma ingenuidade quase infantil, ela acreditava em tudo o que eu dizia.
 

SEMI – Tia Ana, estou jogando videogame no meu relógio.
ANA – Nossa, que incrível! — ela dizia, maravilhada.

Em 1993 existia uma rivalidade entre eu e a professora Sheila

E no dia seguinte a professora Sheila vinha seca:

SHEILA – O que você anda falando pra Ana?
SEMI – A verdade.
SHEILA – Verdade nada, você acha que eu sou burra?
SEMINão… mas a Ana é.

Foi assim que nasceu o apelido “Ana-Burra” — uma crueldade de Sheila que, de tanto ser repetida, virou quase um nome oficial nos corredores (e, claro, eu ajudava a espalhar).O clima ficou ainda mais interessante quando, numa tarde, Sheila revelou que não gostava de inglês britânico e preferia o americano.

PROPAGANDA

Guardei aquela informação como quem guarda uma arma secreta. Semanas depois, a escola anunciou que um palestrante britânico daria uma aula especial. Na hora das perguntas, levantei a mão e, com a mais falsa inocência, soltei:

SEMI – Teacher Sheila told me she doesn’t like British English.
(Professora Sheila me disse que ela não gosta do inglês britânico)

O silêncio foi absoluto. O palestrante me olhou como se eu tivesse cuspido no Big Ben. Sheila sorriu… um sorriso frio, daqueles que prometem vingança.
No dia seguinte, a sentença veio:

SHEILA – Você vai ficar de castigo na sala desocupada do terceiro andar.

Mas eu não estava disposto a cumprir a pena. Olhei para a janela, para a rua… e decidi que aquele seria meu momento de fuga cinematográfica. Subi pela antena de TV, atravessei o telhado e voltei para casa como se nada tivesse acontecido.
 
Em casa, a vida seguia num jogo paralelo. Antes de sair para as aulas, eu deixava ”Double Dragon” do Micro Genius pausado na TV, esperando minha volta.
 
Eu estudava inglês mas sempre com ”videogame” na cabeça

Eu vivia num ciclo diário de gato e rato com Sheila:

SEMI – Posso gravar minha voz no relógio.
           Posso assistir televisão no relógio.
           Posso jogar videogame no relógio.

Sempre dizia isso para Ana-Burra, que, encantada, corria contar para Sheila, apenas para ouvir:
— Ana, você é mesmo…

Anos se passaram. A escola fechou, o mundo mudou. Um dia, em um bar de rock americano, vi no palco uma figura conhecida: cabelo solto, jaqueta de couro, microfone na mão.

Era Sheila. No intervalo, ela me reconheceu imediatamente. Rimos, lembramos das guerras frias da sala de aula. Então, ela ergueu o braço para me mostrar um smartwatch brilhante.

SHEILA – Olha só… jogo Tetris nele todos os dias. Acho que você venceu, menino do relógio.

Ela me abraçou, não como a professora carrancuda de 1993, mas como uma velha amiga. E, antes de voltar ao palco, disse, com um sorriso largo:

SHEILAVocê tinha razão.

E ali, no meio do bar, percebi: o futuro que eu inventava para irritá-la não só havia chegado… como estava no pulso dela.

Depois de adulto eu fiz as pazes com a professora Sheila que usa um smartwatch com o jogo ”Tetris”