ATENÇÃO
Este texto foi escrito por uma pessoa convidada e não reflete, necessariamente, a opinião da WarpZone.

Dia 9 de maio de 2024, vão completar dois anos do falecimento de Rieko Kodama, a desenvolvedora de RPGs mais aclamada pelo seu trabalho na história dos jogos de videogame, ganhadora inclusive do “Oscar” dos videogames, o Game Developers Choice Awards pelo conjunto de sua obra, mas que ainda assim, é pouco lembrada pelo público geral.

Mas afinal, o que teria feito Rieko para ser tão destacada no mercado de games? Para começar, podemos lembrar o fato dela ter sido a designer do primeiro jogo com uma protagonista mulher, o Ninja Princess, de 1985, lançado um ano antes de Metroid (devemos lembrar aqui que estamos falando de personagem humana, pois em 1981 já havia saído Ms. Pac-Man, uma bolinha feminina!).

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Rieko Kodama

Além disso, Kodama foi Designer chefe do primeiro JRPG com protagonista feminina, o Phantasy Star 1, lançado para Master System em 1987. E foi nessa franquia que Kodama se destacou ao ponto de ganhar o apelido de “Primeira-Dama dos RPGs” pela Revista Nintendo Power nos anos 2000, apelido esse que foi repetido por diversas mídias posteriormente.

O que poucos falam é que Kodama foi, de fato, figura central na franquia Phantasy Star, mas ela não foi a única! Phantasy Star é uma franquia repleta de um poder feminino tanto pelas suas criaturas (personagens) quanto pelas suas criadoras (designers, diretoras, compositoras).

Desenhos de Rieko Kodama para os personagens Phantasy Star 1 (desenhos da esquerda)

Phantasy Star 1 nasce no princípio dos JRPGs. Em 27 de maio de 1986 saiu o primeiro Dragon Quest, e com o sucesso absoluto do jogo, três outros jogos seguiram o estilo, o Dragon Quest 2, lançado em janeiro de 1987, Final Fantasy, de 18 de dezembro de 1987 e Phantasy Star, lançado em 20 de dezembro de 1987.

Com dois dias de diferença apenas entre seus lançamentos, Phantasy Star e Final Fantasy são praticamente irmãos no gênero dos JRPGs, mas algumas coisas os diferenciavam bastante, a mais notável era a ambientação. Enquanto Dragon Quest e Final Fantasy apostavam na ambientação de fantasia medieval clássica vinda do RPG de mesa de destaque, o D&D, Phantasy Star misturou essa ambientação medieval estilo capa-espada com ficção científica, muito influenciado por Star Wars e Mobile Suit Gundam.

A outra diferença mais notável era esse universo feminino que estou destacando em Phantasy Star, onde a personagem protagonista principal é uma mulher, e nos bastidores da produção vemos que em uma equipe minúscula (como eram as esquipes de desenvolvimento de jogos naquela época) de aproximadamente vinte membros, sendo sete deles em posições de destaque, entre eles três eram mulheres: Rieko Kodama, Chieko Aoki e Miki Morimoto.

Em 1986, a SEGA estava tentando alavancar as vendas do seu console, que no ocidente era o Master System. Em uma ação, ela fez uma pesquisa de mercado querendo saber do público, que jogos gostariam de ver na plataforma, e a resposta da pesquisa era que o público queria jogar o famoso Dragon Quest.

Sem ter possibilidade de ter um jogo da franquia no seu console (a Nintendo tinha um agressivo contrato de exclusividade nessa época), restou para a SEGA produzir seu próprio JRPG, e quando a equipe que criaria ficou responsável pela produção, de cara, a Designer Chieko Aoki disse que tinha uma história e um universo que estava trabalhando fazia um tempo e essa história transformou-se em Phantasy Star, com muitos dos diálogos e mundos já bastante desenvolvido por Chieko Aoki.

Refinando essa história de Aoki, Rieko Kodama, que era Designer Chefe do jogo, deu visualidade aos personagens principais desenhando-os e dando-lhes melhor seus traços de personalidade (com exceção do personagem Odim, que teve seu rosto desenhado por outro designer a pedido de Kodama, já que ela teve dificuldades em desenhar o rosto de um personagem mais bruto).

Então Chieko dava a alma (história) e Rieko o corpo (visuais) da série. As duas eram os pilares do universo fictício de Phantasy Star. Obviamente , elas eram ponto de partida dessas coisas, mas não faziam sozinhas, Rieko Kodama, como chefe do design fez os personagens principais e outras coisas, mas recebeu ajuda de outros designers, como a Miki Morimoto, que também se identificou bastante com o jogo e, inclusive foi a escritora de um jogo chamado “Hoshi wo Sagashite…”, com design de Rieko Kodama e que se passa no mesmo universo de Phantasy Star (mas praticamente só como menção e não como história de fato).

Phantasy Star foi um sucesso de produção, e até hoje é aclamado por muitos como o melhor JRPG de sua geração. Apesar de toda essa participação feminina, o primeiro jogo da franquia ainda não era dirigido por uma mulher, mas sim por Kotaro Hayashida, o criador de Alex Kidd, mas para o Phantasy Star 2, Chieko Aoki foi colocada como diretora.

Phantasy Star 2 continuava com grande parte da equipe do primeiro game, tendo Rieko Kodama ainda como Designer chefe, e Chieko além de ter sido a diretora, também desenvolveu a história do jogo, e que história meus amigos! Phantasy Star 2 tem um argumento com tudo de melhor de uma história de ficção científica: O cérebro-Mãe, um supercomputador que é praticamente uma entidade cultuada pelo povo do sistema solar de Algol, controla tudo dos planetas desse sistema para que eles tenham condições de vida ideal, como produção da sua fauna, da sua flora e regulação do seu clima, mas algumas coisas começam a sair do controle, e as estações de controle da biodiversidade começam a criar bio-monstros, parece ser uma falha no Cérebro-Mãe, mas absolutamente ninguém sabe quem criou e quem controla o Super Computador, ele está lá faz séculos e as pessoas apenas o idolatram ou são indiferentes a sua existência.

Em meio a essa premissa, você controla um agente espacial que tem que investigar o aparecimento descontrolado desses Bio-Monstros. Com personagens carismáticos, diversos e interessantes, e ideias de roteiro revolucionárias pra um jogo da época, com direito até mesmo a morte de uma protagonista e destruição em massa de um planeta, essa história de Chieko Aoki tinha tudo pra ser a maior obra-prima dos JRPGs de sua geração, mas algumas coisas impediram isso.

Phantasy Star 2 foi feito com muita pressa pra atender ao calendário da SEGA. O jogo começou a ser desenvolvido pro Master System e teve que migrar para o Mega Drive no meio do processo e com apenas seis meses para se fazer toda a migração. Para comportar toda a grandeza da história de Chieko Aoki, foi tempo insuficiente, e essa história incrível que ela criou é diluída em diálogos que não se aprofundam tanto (coisas normal dos RPGs da época, justiça seja feita), poucas “cut scenes” que dessem mais imersão na história, lutas em um cenário genérico e monótono, e para piorar, um estagiário para mostrar serviço, criou labirintos imensos extremamente difíceis para o jogo, quando os funcionários viram o que tinha sido feito, acharam exagerado, mas para não menosprezar o trabalho realizado, mantiveram boa parte desses labirintos, o que elevou muito a dificuldade do jogo. Ainda assim, Phantasy Star 2 é um ótimo jogo, mas deixou de ser a obra prima que poderia ser com a história incrível criada por Chieko Aoki.

Phantasy Star 2

Já com o Mega Drive lançado e disputando mercado com a Nintendo que até aquele momento era totalmente dominante, a SEGA decidiu produzir um produto que fosse o carro chefe de sua disputa, um novo jogo que demonstra-se todo o potencial do Mega Drive e que dialogasse com o público ocidental. Surgia Sonic, e para que esse projeto audacioso fosse possível, a SEGA reuniu alguns dos melhores profissionais de suas equipes para montar um time dos sonhos. E alguns desses profissionais eram da equipe de Phantasy Star, como o programador Yuji Naka, tido como o pai de Sonic e Rieko Kodama. Naka ficou responsável por diversos jogos do Sonic e Kodama trabalhou em Sonic 1 e 2.

Talvez por essa diluição da equipe em outros projetos, a SEGA decidiu passar Phantasy Star 3 para uma equipe totalmente diferente da dos games anteriores da franquia. E na equipe nova, tínhamos mais uma vez o protagonismo feminino, a designer chefe de personagens foi Toyonaka Ozaki, que deu vida aos diversos personagens do jogo. Ozaki é muito lembrada até hoje pela sua participação em Phantasy Star 3, e costuma postar e repostar coisas sobre o jogo em seu Twitter. Além dela, Phantasy Star 3 contou com a trilha sonora feita por outra mulher, a Izuho Numata, que diga-se de passagem fez uma bela trilha, com uma linda musica de abertura.

Desenho do personagem Rhys, de Phantasy Star 3 feito por Toyonaka Ozaki, retirado do livro Phantasy Star III Character Book

Phantasy Star 3 acabou sendo um jogo que desviou um pouco os caminhos da série. Por ter sido feito por uma equipe totalmente diferente, o jogo tinha um design bastante distinto e a atmosfera não lembrava os jogos anteriores da franquia. A história, apesar de bastante interessante, lembrava mais um spin-off da série principal, e a recepção foi morna, elogiosa para alguns, especialmente pelo jogo ter quatro finais diferentes, mas para outros, o game não chegou a atingir as expectativas de um jogo de Phantasy Star.

Nesta época, Chieko Aoki, uma das grandes mentes por trás dos dois primeiros Phantasy Star, casou-se e saiu do mercado de games, ela sumiu totalmente do mercado de jogos e de ficção, ninguém de sua época de SEGA sabe mais da sua vida. Sem Chieko Aoki, a grande mente por trás de Phantasy Star na SEGA era, sem dúvida, Rieko Kodama, e a SEGA passou para o time de criação de Phantasy Star 1 e 2 (sem a presença de Yuji Naka, já que o programador tinha ficado envolvido totalmente com os jogos do Sonic), a missão de criar o novo jogo da franquia, e colocou Kodama como Diretora do jogo. Para a trilha sonora, a equipe contou com um novo membro, Izuho Numata, que foi a única remanescente da equipe de Phantasy Star 3. Então, mais uma vez a trilha sonora de Phantasy Star era feminina.

Com Rieko Kodama como diretora, Phantasy Star 4 foi uma obra-prima, o jogo reúne toda a experiência da equipe com os jogos anteriores. Praticamente tudo no jogo estava melhor acabado, os gráficos, o roteiro, o sistema de batalha, uma ótima trilha sonora, a história é um épico cósmico de tirar o fôlego! É considerado por muitos o melhor RPG de Mega Drive, e atrevo-me a dizer que é o melhor RPG de sua geração empatado com Chrono Trigger.

(Opinião do redator: E sei que falar isso é polêmico, pela grandiosidade de Chrono Trigger, mas na minha experiência pessoal, as cutscenes de PS4 e os diálogos mais aprofundados com a personalidade de cada personagem, criaram uma imersão maior do que o game da Square, mas, sim, isso é um relato bastante pessoal).

Seja como for, é inegável que Phantasy Star 4 foi uma obra-prima dentre os RPGs de Mega Drive, mas sofreu para ter seu reconhecimento. No Japão, o Mega Drive não vendia tanto quanto no Ocidente, e chegava a ser o terceiro colocado em vendas, atrás do Super Nintendo e do PC Engine, e para o ocidente, a SEGA demorou para traduzi-lo, o jogo saiu no final de 1993 no Japão e somente em 1995 nos EUA, e quando saiu nos EUA, foi vendido bem acima do preço normal de jogos da época. Existe até uma hipótese (veja aqui) de que a SEGA OF AMERICA queria sabotar o jogo nos EUA.

Hoje, Phantasy Star 4 costuma ser redescoberto por jogadores que querem conhecer a biblioteca de jogos do Mega Drive, e quem joga, fica encantado, é um jogo muito amigável e bem acabado, envelheceu muito bem (com exceção da taxa de encontro com inimigos que pode ser um pouco irritante) e é eternizado como uma obra-prima da ficção científica dos 16 bits.

Como vimos, Phantasy Star é uma série repleta de mulheres em posição de destaque na produção de seus jogos, mas como isso pode ter refletido nos jogos da série? O primeiro ponto que podemos observar é como a personagem Alis, protagonista de Phantasy Star 1, é ativa em sua jornada por vingança, mas não tem seu corpo tão a mostra como outras personagens da SEGA na mesma geração.

Em 2020 tive a oportunidade entrevistar a Rieko Kodama para a revista acadêmica “Domínios da Imagem” da Universidade Estadual de Londrina, e perguntei sobre essa questão. Essa entrevista foi publicada em 2022, e, devido a uma falha no site da revista, entrou no ar (numa dessas coincidências que a gente não sabe explicar) exatamente no dia que foi divulgado o falecimento da Rieko Kodama. Sobre a questão das personagens femininas, Kodama disse:

“Penso que o mundo da produção de jogos, antes de eu começar a trabalhar na área, era de homens que produziam jogos para a diversão de outros homens. Nas gerações posteriores a minha, aumentou-se a quantidade de desenvolvedoras mulheres. Naturalmente, com a maior participação de mulheres nos times de desenvolvimento de jogos, deixou de se retratar a mulher de uma forma absurda e procurou-se representá-la numa posição de igualdade (aos homens)”.

“Alis parte para viagem e luta no mundo de Phantasy Star na mesma posição que Lutz e Odin (Tylon na versão japonesa). Os homens e as mulheres não são considerados diferentes nesse mundo, todos são companheiros que compartilham os mesmos objetivos. Não havia necessidade de descrever uma mulher especialmente mais forte do que todo mundo, tentou-se retratá-la de forma igual (aos personagens homens) em todos os aspectos.”

Kodama ainda reforça que isso foi possível especialmente pelas mulheres em posição de destaque nas produções:

“…penso que a presença de algumas mulheres no time influenciou o jogo. Pois, as situações ou visões sobre mulheres que as ofendiam foram descartadas. E mais, as mulheres ficaram encarregadas de cargos importantes nos times para que os desenvolvedores homens não pudessem ignorar a opinião delas.”

Kodama após dirigir com tanto êxito Phantasy Star 4, foi diretora do RPG das Guerreiras Mágicas de Rayearth de Sega Saturn, e posteriormente foi produtora de Skyes of Arcadia do Dreamcast, que é considerado o melhor RPG da plataforma. Posteriormente foi produtora da série de RPGs “7th Dragon”, muito bem recebida no Japão.

Phantasy Star, a partir do Dreamcast, passou a ser uma franquia online de batalhas em tempo real e sem os principais nomes da série original em sua produção. Além da história dos jogos passando-se em um universo diferente dos primeiros jogos da franquia.

Os produtores de Phantasy Star 4, após o lançamento do jogo, chegaram a imaginar possibilidades de um Phantasy Star 5, mas esse projeto foi abandonado e cheguei a perguntar para Kodama sobre a possibilidade deles criarem um novo Phantasy Star ambientado no universo da franquia antiga. Kodama respondeu:

“Não acho que produziremos mais algum jogo do Phantasy Star. Acredito que os novos funcionários que entraram na Sega que já jogaram Phantasy Star devem pensar na continuação do jogo! […] Penso que o trabalho de produção de jogos é algo a ser passado para as próximas gerações. Quando surgir alguém que tenha se divertido com os jogos que produzimos e possua interesse e paixão em desenvolver um jogo como o nosso, Phantasy Star pode vir a retornar algum dia.”

A Primeira-Dama dos RPGs também deixou um recado para nós, brasileiros:

“Quando criamos o Phantasy Star, não pensávamos que as pessoas do Brasil fossem gostar tanto. Para mim é uma grande honra que vocês do Brasil, que estão tão distantes do Japão, amem Phantasy Star. Se vocês sentirem, nem que seja um momento de felicidade, ao jogarem o título que criamos, eu me sentirei muito feliz também.”

Para quem quiser ler a entrevista completa, ela encontra-se aqui: Entrevista com Rieko Kodama.

Bom, após essa jornada pelos mundos de Phantasy Star, podemos concluir que RPG é coisa de mulher! E que bom!

Referências: Start UOL, Meio Bit, Gazeta de Algol e UEL.