No começo nem tinha guerra. Tínhamos o “mesmo” videogame — pelo menos era o que a garotada enxergava. O meu primo Jean Francisco com seu Dynavision, eu com meu Micro Genius.

Dois nomes diferentes, o mesmo coração de Nintendo batendo lá dentro, mas quem é que sabia disso em 1991? A gente tratava como se fossem espécies rivais.

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Nosso campo de batalha era a Geração Games, a locadora a uma quadra de casa. O ritual era sempre igual: Alugar “Tartarugas Ninja 2” na sexta para devolver segunda-feira.

Na minha casa eu enaltecia o controle de quatro botões (Micro Genius) mas na verdade era só dois (A e B normais e os outros dois turbo). Na dele, um controle estilo arcade, alavanca e botão grandão (Dynavision).

— Perdi porque não tô acostumado com esse teu controle de brinquedo — reclamava ele, quando os inimigos o colocavam pra dormir mais cedo.

— Engraçado, na sua casa eu também não tô acostumado — eu respondia — mas pelo menos não invento desculpa.

Até aí, tudo estava tranquilo. A amizade tinha mais espaço que a provocação. Isso até o dia em que chegaram os 16 bits. Eu ganhei um Mega Drive. Ele, um Super Nintendo. E a molecada ficou dividida como final de campeonato.

— Street Fighter II no Super é mais rápido, mais bonito! — ele dizia como se fosse o dono da verdade.
— Quase igual, vai. O do Mega tem as músicas mais pesadas, eu falava como se fosse hino nacional.
— Final Fight é mil vezes melhor que esse tal de Streets of Rage, fala sério.
— As músicas de ‘’Streets of Rage’’ são mil vezes melhor.

A discussão só crescia porque cada um passou a ter torcida organizada. O Jean juntou uma galera fanática pelo Super Nintendo. E, como toda torcida, veio a lenda urbana:

— Te falaram do cara que amputou a mão de tanto jogar no controle do Mega? — ele dizia, olhos arregalados.
— Ah, pronto.
— E tem mais: jogo do Mega cega. Já começa avisando, ó: “SEGA”.
— Então “Nintendo” é de não tendo? — devolvi.

Eu e Jeanfrancisco jogando ”Streets of Rage 2” em 1993

Essas pérolas, aliás, acabaram indo parar no filme “A Última Locadora” (2022). Eu também arrumei meu exército. Na linha de frente, o Kanashiro, sujeito provocador, meio sombrio, diziam que ele tinha uns “parafusos a menos’’ e era devoto do Mega Drive.

— Esse Zelda aí é longo por um motivo: quem joga vira monstro — ele falou pro meu primo, com toda a certeza de um pesquisador que estudou na Universidade do Achismo.

— Hahaha, manda mais uma.
— Assiste Cemitério Maldito. Tem uma Zelda lá. Depois me conta se você termina o jogo.

O Jean riu. Depois não riu. Assistiu no Supercine, ficou dias sem dormir e nunca alugou Zelda. Kanashiro 1 x 0 Jean. A guerra virou rotina. Manhã de sábado, sol nascendo, e a gente já estava na porta da Geração Games, cada um puxando o dono da locadora pro seu lado, como se fosse técnico disputando promessa de base.

Até que a sorte soprou pro meu lado: meus pais arremataram um Super Nintendo num leilão por um valor baixíssimo.

De repente, eu virei uma espécie de embaixador da ONU dos videogames: Mega Drive na sala, Super Nintendo no quarto, Micro Genius aposentado no armário. E quando você tem os dois, a guerra perde um pouco da graça. A gente começou a trocar jogos, abrir concessões, experimentar o “outro lado” sem culpa.

Foi quando o Jean apareceu com um 3DO debaixo do braço, como quem desce da nave-mãe.

— Isso aqui é o futuro. CD, meu amigo! Enquanto você sopra cartucho, eu ouço música no console.
— Parabéns — respondi — agora você tem um toca-discos caro.

A nova guerra começou com demonstração pública. A Geração Games liberou a TV maior pra estreia do brinquedo. O Jean trouxe Need for Speed reluzente, caixa cheirando a loja. A galera cercou, hipnotizada pelos vídeos com qualidade de “Cd’’ diziam.

— Repara, isso é realismo, não esses bonecos cabeçudos de 16 bits — ele narrava, orgulhoso.

E foi lindo… por sete minutos. Um espirro de poeira, um risco no CD, um frame congelado daqueles que fazem a imagem virar quebra-cabeça. O 3DO engasgou no meio da ultrapassagem. Silêncio. O Jean tirou o disco, assoprou (ironia suprema), colocou de novo. Travou de novo.

— Quer ligar o Streets of Rage 2 enquanto resolve aí? — propus, metade amizade, metade maldade.

A galera se reunia na ”Geração Games” e na ”Play Games” para jogar jogos por hora.

Ligamos. Em dois minutos, a locadora virou pista de dança clandestina: baixo pulsando, soco sincopado, fúria coreografada. Até o Jean, à contragosto, entrou no ritmo. A galera toda transformou a locadora em pista de dança.

A partir dali, nossas batalhas mudaram de tom. O 3DO era impressionante, sim, mas caprichoso. O Mega e o Super eram mais pé no chão: colocava, jogava, vivia. O som do cartucho encaixando, o clique do botão, o “SEGA!” que parecia gritar do fundo da TV — tudo isso era a alma da nossa adolescência.

Anos depois, quando cada um seguiu seu caminho, percebi o óbvio que a infância esconde: a guerra nunca foi sobre qual console era melhor. Foi sobre ter alguém pra disputar, um rival amigo que te puxa de manhã pra locadora e te empurra de madrugada pra mais uma fase.

Nos reencontros, a gente ri das histórias — da mão amputada, da “cegueira” fonética, da Zelda do Supercine. E sempre alguém pergunta:

— E aí, qual ganhou? Mega, Super ou o 3DO?
O Jean olha pra mim, eu pra ele.
— Ganhou a Geração Games — eu digo.
— Ganhou nossa amizade — ele completa.

Porque, no fim, o que ficou foi uma coleção de cheiros de cartucho, barulhos de controle, risadas no corredor. E a certeza de que o melhor jogo sempre foi aquele que a gente jogou um na casa do outro, na mesma rua, no mesmo bairro, com a mesma vontade de ter razão — e de ter com quem brigar.

ABAIXO UMA CENA FILMADA COMIGO E JEANFRANCISCO EM 1993 JOGANDO ”STREETS OF RAGE 2”: