Fechem os olhos. Agora imagine uma pequena cidade do interior de São Paulo, em 1994. Ruas de paralelepípedos misturadas a ruas de asfalto, desníveis e calçadas, dois jardins, apenas uma pizzaria, apenas uma locadora e apenas uma rua com todos os bancos perfilados um do lado do outro.
E como estamos em 1994 lembre-se que, ao lado desses bancos, sempre tem uma loja que faz revelação de filmes. Perfeito. Agora imagine que, em 1994, e morando nessa cidadezinha, você quer um jogo específico de Mega Drive ou de Super Nintendo. Um daqueles dados como “chiques”, que usam bateria de salvamento ou chips especiais.
Você pode ter a sorte desse jogo ter sido lançado, oficialmente, em território nacional pela Playtronic ou pela Tec Toy. Nesse caso existia uma possibilidade que a locadora da nossa pequena e hipotética cidade poderia adquirir esse título.
Com sorte, visto que nossa pequena cidade não tem lojas de videogame, você poderia pedir, implorar, chorar e fazer manha com o dono da locadora o suficiente para que ele comprasse duas cópias do jogo desejado para, só aí, você adquirir uma.
Caso você não tivesse feito amizade com o dono da locadora ou com os dois rapazes que lá trabalhavam, você tinha a opção de esperar um momento no qual seus pais fossem a uma cidade maior, incluir isso na sua lista de presentes, visitar grandes redes de lojas e contar com a sorte de conseguir encontrar seu título em uma delas, por uma quantia razoável de grana.
Se você fosse verdadeiramente ousado, em 1994, você poderia usar aqueles anúncios de venda por correio que vinham nas revistas de videogame, e tentar comprar o jogo de alguma distribuidora da capital, para que fosse enviado pelo correio para você. Você pagava antes, recebia um código de postagem e aguardava…
E aguardava.
E aguardava.
Se nada acontecesse com a expedição da loja em São Paulo nem com o correio no trânsito e o jogo chegasse a sua residência, você ainda podia ter a péssima experiência do jogo errado ter sido enviado. O que, nos anos de 1994, iniciava um gigantesco processo que incluía centenas de minutos no telefone, fazendo ligação DDD, com uma possível conta telefônica mais cara que o seu, já caro, jogo.
Essas possibilidade, no entanto, só eram possíveis se o jogo tivesse sido, oficialmente, lançado em território nacional por uma das distribuidoras já citadas anteriormente.
Se não tiver sido lançado oficialmente aqui suas saídas eram usar os serviços das importadoras ou pedir que alguém trouxesse o game do Paraguai para você.
Nossa pequena cidade hipotética não conta com uma importadora própria, mas, a 40 minutos dela, temos uma cidade de 300 mil habitantes que conta com uma que importa, entre outros produtos, jogos de videogame. Você sempre tem a possibilidade de requerer a importação daquele jogo com eles, pagando uma parte do valor no momento da requisição, e o restante no momento da retirada do jogo.
Ocasionalmente eles vão conseguir achar o jogo. Ocasionalmente vai ser o jogo que você pediu. “Pedir do Paraguai” era uma saída mais comum para a população de nossa pequena cidade. A sociedade local, inclusive, contava com dois profissionais cuja o trabalho, integral, era a “sacolagem”: nome dado a prática de comprar em escala, do Paraguai, itens previamente pedidos.
Os dois profissionais faziam suas viagens na terça-feira, com suas entregas na sexta-feira, o que tornava o processo de esperar pelo jogo, que poderia render um fim de semana de muita diversão, ainda mais complicado.
O problema de “Pedir do Paraguai” era que você contava com a boa vontade do profissional fazendo a compra em achar o que você pediu, a sorte do profissional não ser parado pela polícia federal e o seu jogo estar entre os objetos acima da cota, que o cartucho comprado fosse efetivamente o que estava mostrado no exterior da caixa entre uma série de outras dificuldades. Era uma saída consideravelmente mais barata que as importadoras, no entanto…
De posse de todas essas novas informações eu quero que você imagine a seguinte situação: Existia um jogo, de 1992, para o Mega Drive, chamado Land Stalker. Um RPG de ação ao estilo Zelda. E eu sou louco por Zelda.
O jogo foi apresentado numa Super Gamepower que eu li e reli, centenas de vezes. Eu sabia tudo sobre a espada de Gaia, a bota de aço e tudo mais que o jogo apresentava. E eu apresentei o jogo para meus pais com a frase “Quero tanto que jogo até em japonês”.
No momento em que eu apresentei o jogo aos meus pais, não havia qualquer comemoração por perto, de forma que o assunto caiu no esquecimento. Passado alguns meses chegou o Natal e eu insisti em Land Stalker (que vou passar a chamar LS para facilitar) e meus pais deram de ombros e me deram o “ok” para comprar o jogo.
Na época eu tinha 12 e ainda não morava na pequena cidade o que me dava acesso a uma série enorme de importadoras e lojas espalhadas pela capital. Meus pais foram comigo a uma diversa quantidade de lojas, por horas, com cada uma delas tentando oferecer algum outro jogo que eles tinham no lugar de LS.
E ninguém tinha o jogo. Fazia sentido. O jogo ainda não tinha lançamento americano, logo, nenhuma possibilidade de ter sido lançado oficialmente em terras tupiniquins pela Tec Toy. As importadoras não mantinham jogos “mais complexos” em suas lojas, por medo que eles nunca saíssem e aqui estava o eu de 12 anos pedindo que uma importadora tivesse, a pronta entrega, um RPG japonês bem novo, de Mega Drive, que eles nunca tinham ouvido falar.
Retornei para a casa derrotado, de certa maneira foi bom: meus pais, dentro do poder aquisitivo deles, nunca, sem uma boa razão, me negaram nada. Logo, quando o universo me negou, eu pude aprender, num ambiente bacana, que você não ganha todas.
Eu fiquei chateado mas “vida que segue”. Escolhi outro presente e o assunto LS morreu. No ano seguinte, no meio de um ano louco na escola, com mudanças de casa e meus pais se preparando para irmos para outra cidade, eu li em revistas que o jogo havia sido oficialmente lançado no Genesis, mas como nunca trombei com ele em nenhuma loja, e com os meus pais sem tempo para “batemos perna” e acharmos o jogo, o assunto novamente foi colocado de lado.
Quando o ano letivo de 93 terminou o “apê” dos meus pais não tinha mais nada que não estivesse grudado no chão, salvo uma tv, um Super Nintendo, um vídeo cassete e algumas malas de roupa. Todo o resto já tinha sido levado para a pequena cidade e eu e meu irmão pudemos, finalmente, conhecer a casa nova. Foi uma mudança colossal de vida. Nada mais de van escolar (a escola ficava a 8 quarteirões de casa), nada mais de compras enormes feitas a cada 2 ou 3 semanas que tomavam basicamente uma tarde toda (a cidade tinha dois supermercados num raio de 12 quarteirões de casa) e nada mais de centenas de lojas e dezenas de importadoras para procurar jogos.
Para a minha sorte, como praticante de Karatê-Dô tradicional, a cidade tinha um Sensei, que vinha de uma cidade vizinha e dava aulas 3 vezes por semana. Eu mais do que rapidamente me inscrevi na academia e comecei a fazer as aulas. Foi muito bom. Uma das melhores decisões que tomei na vida: uma que criou amigos que carrego até hoje.
E foi la que eu conhecei o Ren. Vamos mudar o sobrenome dele por segurança. Ren Okada. O Ren era mais velho, estava fazendo faculdade, tinha carro e tudo mais. No entanto, estava numa graduação mais baixa que a minha, e por não ser muito alto, e ser meio gordinho, acabava muitas vezes pareado comigo, para os exercício de Kihon e aplicação de Kata.
Talvez por ser mais velho ele se preocupou com a situação do “Cara de fora que chegou agora na cidade” e me acolheu de forma fantástica. Eu fui na casa dele. Ele foi na minha. Fui no almoço de 25 de Dezembro da família dele e tudo mais. Um cara super bacana.
O assunto videogame nunca tinha sido citado entre nós até janeiro ou fevereiro de 1994. Estávamos fazendo alongamento, Sensei ainda não havia chegado, Senpai estava puxando o alongamento e o Ren me solta: “Você é bom de videogames?”
Olhei nos olhos dele, uma coisa mais fácil de falar do que de fazer, quando sua perna, está por cima do ombro da outra pessoa, e falei “Eu… acho… que sim. Por quê?”, “Por que eu tenho uns jogos que eu comprei que eu não entendo como joga” ele respondeu.
Enquanto trocávamos de posição, já começando a suar do alongamento (lembre-se: Dois gordinhos), eu respondi “Quer que eu vá na sua casa tentar?”. Ele achou uma ótima ideia e, alguns dias depois, eu apareci na casa dele.
Um dos jogos que ele estava tendo problemas era TecnoClash, que exige o uso do botão mode, para curar. Outro jogo que ele tinha dificuldades era o imensamente difícil Buck Rogers, do Genesis.
E só de eu citar esses dois títulos vocês perceberam que eu e o Ren tínhamos mais uma coisa em comum: ambos gostávamos de RPGs, e ele tinha um monte deles. O que ele não tinha era paciência com a montanha de inglês nos jogos. Ren tinha pouco domínio do idioma e por fim se perdia nas informações e ficava travado nos jogos. Como, embora fosse de família de japoneses, ele também não dominava o idioma nipônico, seu problema se estendia para os jogos em japonês que ele tinha também.
“Você tem muitos jogos japas?” perguntei – principalmente porque não tinha visto um único cartucho japa entre os que ele tinha me mostrado. Ele levantou e foi para outro cômodo, voltando com uma caixa de papelão. E dentro dela devia ter uns 15 a 20 jogos de Mega Drive Japoneses, no que chamaríamos hoje de CIB, basicamente imaculados. E um deles, jogado de lado na caixa, era Land Stalker.
Eu travei. Peguei o jogo devagar. Não tenho certeza absoluta se tinha o domínio sobre o maxilar. Acredito, firmemente, que eu fiquei com a boca aberta o tempo todo. Ren olhou o jogo por cima do meu ombro e disse “Gosto muito desse, mas nunca fui muito longe”.
Eu não estava ouvindo. Eu abri o jogo. Folhei o manual. E ali estava LS. Nas minhas mãos.
Eu perguntei devagar com medo de ofendê-lo “Ren, você não venderia esse aqui para mim?”
Eu estava preparado para ele me perguntar o motivo, já tinha toda a história preparada para ser apresentada para ele, mas tudo que ele disse foi: “Claro! Cinquentão tá bom?”.
Cinquentão estava bom. Se ele tivesse dito duzentão… iria, provavelmente, estar bom também.
O cara era tão “ponta firme” que eu levei o jogo para casa naquela tarde mesmo, sem pagar nada. Cheguei em casa, peguei o dinheiro para pagá-lo, peguei um pouco mais de grana, passei no super mercado, comprei uma caixa de chocolates, e levei o dinheiro e os chocolates para ele.
A partir daí eu mergulhei em LS. Não era a primeira vez que eu me aventurava num RPG em uma língua que eu não dominava e isso não tornava a tarefa muito fácil. Na primeira vez que eu travei no jogo, após ter conversado com todo mundo que conseguia, eu pedi ajuda a uma moça nipônica, a qual agora mora no Japão, que trabalhava fazendo ajustes de roupas na cidade. Levei o mega drive, o cartucho, cabos e tudo mais na casa dela, e ela leu algumas partes para mim. Ainda assim, não demorou muito para eu me encontrar travado de novo.
Passei o fim de semana travado e não queria incomodar a Helena mais uma vez. Coloquei o jogo de lado e tentei tirar a mente daquilo. Eu ia procurar minhas revistas, ver se eu tinha algum detonado e caso não tivesse, ia tentar comprar alguma revista.
A segunda feira chegou e junto com ela o treino. Avistei Ren e de cara fui contar do meu travamento para ele. Contei da peripécia com a Helena e que tinha vergonha de pedir ajuda uma segunda vez com o tanto de incômodo que era. Ele meneou a cabeça e me falou “Cara. Minha prima tá vindo morar para essas bandas. Ela é do lado da família que fala Japa. Não sei se é fluente mas as vezes ela consegue te dar uma mão”.
Pensei comigo que não havia razões para não tentar, mas ela ainda iria demorar alguns dias, então fui jogar outros games. O tempo passou e Ren me ligou para avisar que a prima dele estava na casa dele e que eu podia ir lá, se pudesse, que ela lia para nós o que conseguisse.
Era um dia super quente e abafado mas corri na casa do Ren. Cheguei no portão, pedi licença para a mãe dele para entrar e me ofereci para ajudá-la com o Jardim (ela estava regando as plantas). Ouvi que era um menino muito educado mas que não precisava se incomodar.
A casa do Ren é uma casa de esquina bem “diferentona” para os padrões de cidade pequena, pois foi construída diagonalmente ao terreno, com uma rampa para carros elevada que dá do lado da porta da sala. Essa rampa era coberta de azulejo escuro, meio cinza, que refletia, sei lá, 250% de luz solar e tornava o jardim da casa dele bem bonito e ainda mais quente. Cheguei na porta da sala, bati duas vezes, pedi licença em voz alta e abri devagar.
E meu mundo mudou para sempre. Sentada na poltrona da sala estava uma menina da minha idade, ou ligeiramente mais nova, japonesa, de tez moreno claro, olhos amendoados, lábios lindos e um sorriso de 5000 Volts. Ela olhou para mim, deu risada, e falou “Pode entrar que o primo foi no banheiro”.
E eu não consegui falar nada. Eu falo. Sem parar. Sem pegar ar. Eu acordo falando e vou dormir falando. E naquele momento eu não conseguia falar nem para salvar a minha própria vida.
Ela tava com uma camiseta fofinha, com algum bichinho, ou, talvez, a Hello Kitty. Tênis branco. Jeans. Óculos de aro fininho. Super fofinha e aquele jeito de quem é mais inteligente que o mundo inteiro.
E eu não conseguia dizer a porcaria de uma única palavra. Eu sei que parece bobo quando lemos de fora assim mas eu juro para vocês que eu estava a beira de um colapso nervoso. Lá estava eu, segurando uma sacolinha de supermercado xexelenta com dois cartuchos de Megão na mão, vestindo shorts velhos, uma camiseta que não era nada especial, sem ter passado perfume, com um cabelo sem corte estranho e de chinelos. Chinelos!!!
Eu nunca usava chinelos e só usei naquele dia porque eu tinha um corte no pé causado por pisar num canto de parede num retorno de Mae Geri. Eu odeio chinelos. Eu sempre pensei que chinelos me deixavam com chulé e agora eu estava vestido daquele jeito, potencialmente com chulé, na frente da menina dos meus sonhos. Que eu nem sabia que existia até 3 minutos atrás! E ela não parava de rir. Meu Deus! Que sorriso era aquele?!
Quando entrei ela disse: “O que você trouxe para jogarmos?” e tomou da minha mão a sacolinha de supermercado. Ela abriu, olhou os jogos, pegou o LS e me perguntou “É esse aqui que você está travado?”
“Isso…” eu disse, baixinho, me amaldiçoando por não ter dito nada até aquele momento.
“Vamos jogar então? Enquanto o primo não vêm?” e bateu a mãozinha, como que indicando que eu sentasse, do lado dela no carpete.
Ren chegou depois, o clima ficou bem mais leve, batemos papo, jogamos, ela descobriu que eu precisava conseguir um “emblema do machado” para que minha espada conseguisse cortar umas árvores e, finalmente, consegui sair da onde estava bloqueado e salvar na cidade seguinte do jogo.
Ao longo da conversa eu descobri que o nome japa dela era Hana, mas que ela costumava ser chamada pelo nome Romaji que era Valéria. Descobri ainda que, assim como eu meses antes, ela estava mudando para a cidade e que ia começar a ir na mesma escola e na mesma “série” que eu. De fato, dias depois, descobrimos que estávamos, inclusive, na mesma sala (Não preciso dizer que mudei de lugar na sala para sentar do lado dela né?!).
De quebra, além de conhecer a “Vá”, jogar videogame e não terminar o dia com chulé, eu ainda comi bolo de laranja e tomei coca-cola. Em 1994 isso era um dia considerado de sucesso absoluto.
Eu travei mais duas vezes em LS e, em ambas, pedi ajuda para a Valéria que meio que, como eu era a única pessoa que ela conhecia de fora da escola, virou minha melhor amiga. Ela veio a minha casa nas duas vezes, me ajudou a ler o texto, me ensinou noções básicas de japa e me deu meu primeiro livrinho de japonês para iniciantes (e, para o desapontamento dela, eu ainda não falo japonês com qualquer nível aceitável de fluência).
Aliás, fator importante, nas visitas dela a minha casa, eu estava sempre de tênis e banho tomado.
Na segunda visita minha Vó, que morava conosco e era uma italianona inxerida, perguntou, enquanto servia leite com Toddy e bolo de fubá, em voz alta: “Ela é sua namorada?”.
Os dois se entreolharam. Explodimos de rir. Eu achei que não íamos responder nada. E ela olhou para a minha vó e disse “Eu acho… que sim… dona Nena” levantando o narizinho que eu adorava, mexendo os óculos no processo e olhando para mim.
Namoramos por uns dois anos. “Zeramos” Land Stalker, Shinning Force, Der Langrisser e uma série de outros RPGs, em japonês, lado a lado. Eu aprendi muito japonês e ela aprendeu uma série de coisas sobre super heróis e ciência. Por bobagens da adolescência, intercâmbio e tudo mais, uma hora, não conseguimos seguir mais juntos, mas a amizade prossegue e ainda falamos em redes sociais.
E sim, após todos esses anos, ela ainda me cobra o não aprendizado do japonês. O primo dela, o Ren, no entanto, virou um super amigo meu. Afinal, eu fui na casa dele para ajudá-lo e sai de lá com Land Stalker e minha primeira namorada.
E no fim, ambos foram tão especiais quanto eu achei que seriam.