[intense_blockquote] Recordar é viver
Eu ontem sonhei com você [/intense_blockquote]

Os versos acima iniciam a letra da marchinha Recordar, que embalou os bailes de Carnaval no ano de 1955. A letra é de Aldacir Louro, Aluizio Marins e Adolfo Macedo, e a primeira gravação foi com Gilberto Alves (1915-1992). Posteriormente, a canção foi regravada por diversos intérpretes, como a banda Rio-Copa, Agepê e Toquinho.

Não, eu não era nascido na época em que a música foi lançada. Contudo, a tenho vívida na memória por tê-la ouvido em cenas de filmes nacionais, documentários, programas de rádio e sendo cantada por pessoas “mais velhas” do meu convívio quando criança, na década de 1970 e primeira metade da década 1980.

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Iniciei o texto com estes versos principalmente por causa do primeiro, “recordar é viver”, que bem poderia ser reescrito como “recordar é reviver”. Estas três palavras não poderiam sintetizar de maneira mais precisa a própria razão de ser de comunidades como a WarpZone e tantos outros grupos dedicados à recuperação, apreciação e preservação da memória nas suas diversas dimensões: coletiva, individual, material, imaterial.

Este texto é bastante diferente dos anteriores da minha coluna. Desta vez, não vou falar sobre o mercado de entretenimento, nem relatar casos e curiosidades dos anos 90. Voltarei a falar sobre esses assuntos, é claro, mas neste momento eu gostaria de fazer um convite para uma reflexão sobre dois pontos.

O primeiro ponto diz respeito aos motivos pelos quais adoramos objetos – materiais e imateriais – e temas que remetam a épocas passadas, quer sejam jogos, brinquedos, eletrodomésticos, marcas, alimentos, bebidas, veículos, filmes, programas televisivos, tecnologias antigas, fotos e por aí afora.

Coleção de jogos antigos, Nintendinho

Pois bem, é bastante provável que você já tenha ouvido falar de memória emotiva, também chamada de memória emocional. É uma técnica de atuação dramática disseminada por Constantin Stanislavski (1863-1938), ator, diretor, pedagogo e escritor russo. A técnica, empregada até hoje – embora sempre tenha gerado uma boa dose de controvérsia – consiste em “puxar” da memória situações nas quais o ator tenha vivenciado o mesmo sentimento experimentado pelo personagem que está representando, e desta maneira trazer esse sentimento novamente à tona, conferindo realismo à atuação.

Exemplificando, se o personagem está com muita raiva, o ator deve recordar-se de situações em que sentiu-se enfurecido; se o personagem estiver sentindo profunda tristeza pela morte de uma pessoa querida, o ator deve concentrar-se e lembrar da perda de alguém muito especial que tenha vivenciado. Com bastante prática, chega um momento em que o ator consegue colocar-se no lugar do próprio personagem, “internalizá-lo” e, ao precisar chorar, por exemplo, não mais precisará recordar de eventos de sua própria vida, mas simplesmente sentir o mesmo que o personagem sentiria.

Parte da técnica de atuação consiste também em ser capaz de, após a representação, retomar seu estado emocional normal, trazendo ao consciente a informação de que “este sentimento não me pertence”. Sendo assim, fica claro que o aperfeiçoamento do ator ocorre não apenas pela experiência adquirida nos palcos ou à frente das câmeras, mas também com a própria maturidade e acúmulo de vivências pessoais.

Certo, mas o que o método de Stanislavski tem a ver com o tema abordado aqui e, principalmente, com este primeiro ponto de reflexão? Tudo! Logo você vai compreender.

Com o passar dos anos, mais precisamente quando chegamos à vida adulta, acumulamos uma carga incessantemente crescente de responsabilidades, preocupações, frustrações, incertezas, inseguranças, angústias, instabilidades e perdas afetivas de vários tipos. Fazendo uma analogia físico-química, toda essa “carga negativa” precisa ser compensada por uma “carga positiva” equivalente em intensidade, pois do contrário teremos um desequilíbrio na saúde nos âmbitos mental e emocional, que por fim impactará também o âmbito físico.

A pergunta é: como obter esse equilíbrio, ou seja, como conseguir carregar positivamente nosso sistema mental-emocional?

Bem, há inúmeras possibilidades, como a prática de atividades de lazer, esportes, convívio social e relações afetivas salutares, novos projetos pessoais e/ou profissionais estimulantes, novos aprendizados e quaisquer outras ações que sejam “gratificantes para a alma”. Essas são possibilidades relacionadas ao “mundo exterior”. Existe, entretanto, uma outra possibilidade de ativação de sentimentos positivos que encontra-se disponível dentro de nós mesmos, que é o que dá sentido à associação com o método da atuação dramática por uso de memória emotiva mencionado anteriormente.

Jogar taco na rua – Imagem de Internet, divulgação

Toda pessoa, por mais dificuldades que possa ter enfrentado na vida, certamente já vivenciou períodos ou momentos de alegria, expectativas promissoras, despreocupação, inocência, “leveza de alma”, senso de pertencimento, confiança nos outros, autoconfiança, orgulho, afeto correspondido, realização. Todos esses sentimentos estão registrados na mente, mesmo que em suas camadas mais profundas. Mas como é possível entrar em contato com eles?

A resposta para esta pergunta é relativamente simples. Se você tiver uma boa capacidade de concentração, pode simplesmente voltar-se para dentro de si e evocar a lembrança desses momentos – veja o método de Stanislavski aqui! – e consequentemente toda a gama de sentimentos associados a eles, que foram registrados na mente, virão à tona. Porém, existem formas de facilitar esse processo, e um delas é manter contato com elementos que de alguma forma fizeram parte desses acontecimentos.

Vou dar um exemplo hipotético mais concreto, relacionado ao universo retrogamer. Imagine uma pessoa adulta, que tenha sido criança na década de 1980. Hoje ela tem preocupações com o trabalho, com o número infindável de contas a pagar, com a educação dos filhos se for pai ou mãe, o estresse do dia a dia (no trânsito, por exemplo), a saúde própria e a de seus familiares, incertezas econômicas e políticas que tornam imprevisível o próprio futuro e o das pessoas importantes para ela. Enfim, problemas dos mais variados tipos, aos quais todos estamos sujeitos, que acabam por drenar parte substancial de nossa energia vital e nos desequilibrar emocionalmente.

À noite, após mais um dia altamente cansativo e estressante, essa pessoa carrega em um antigo console de videogame – igual ao que teve em sua infância ou adolescência, ou talvez o próprio – um cartucho que figurava entre seus preferidos na infância, muito raro de ser encontrado atualmente, arrematado na live de vendas da Casa do Videogame.

Liva da “A Casa do Videogame”

Em questão de poucos minutos, o estresse vai dando lugar a uma série de sentimentos revigorantes, ativados por uma sucessão de lembranças prazerosas: o sentimento de superação de receio ao ter tido a coragem de tomar a iniciativa de pedir o cartucho ao pai ou mãe; a alegria ao receber a resposta positiva – com a condição de não negligenciar os estudos, é claro! -, a ansiedade pela chegada do presente (ansiedade, neste caso, no melhor sentido); a euforia ao ganhar o cartucho; a espera de segundos com sabor de horas para a carga do jogo; o orgulho por conseguir acumular cada vez mais pontos e/ou superar mais fases a cada dia; o prazer da companhia dos amigos nas partidas a dois.

E esse tipo de lembrança não é feito apenas de imagens! Conseguimos até sentir o cheiro de plástico acrílico novo e o calor vindo do aparelho de TV de CRT, do console e da fonte, a textura do tapete onde sentávamos para jogar (porque na maioria das vezes era melhor do que jogar sentado no sofá!).

E, complementando, embora neste exemplo tenhamos nos concentrado nos fatos relacionados especificamente ao cartucho de videogame, quando a pessoa teve essas recordações provavelmente também relembrou-se de todo o contexto, ou circunstâncias, em que esses eventos ocorreram: a vida com os pais e talvez outros familiares, as outras brincadeiras de que ela gostava, a obrigação única de ir bem na escola, as amizades e principalmente a percepção de que havia uma vida toda pela frente com infinitas possibilidades a serem exploradas, permitindo sonhos sem limites. Tudo isso veio também “no pacote de lembranças”.

Em suma, ao jogarmos um jogo que fez parte da nossa infância, décadas depois, nosso estado emocional reequilibra-se e nos sentimos recarregados, reenergizados, para enfrentarmos os próximos obstáculos do cotidiano adulto.

Citei um exemplo do universo retrogamer, mas o mesmo acontece com fãs de filmes antigos, por exemplo, e todos aqueles que têm prazer em preservar seus discos, revistas, fotos e quaisquer objetos que lhes sejam emocionalmente importantes, ou que sintam-se especialmente tocados ao encontrarem um objeto que lhes traga boas recordações, como por exemplo um modelo de automóvel igual ao da sua família na infância, que evoque lembranças dos passeios de fim de semana, viagens, visita aos avós, etc.

Explicadas as razões de gostarmos tanto do universo retrô, vamos prosseguir à segunda reflexão que eu proponho, e que dá título a este texto: nostalgia significa viver no passado?

Pessoalmente, enxergo uma resposta com três ramificações:

1 – Não. Nostalgia não significa necessariamente viver no passado. Como dissertei até aqui, a evocação de boas recordações colabora para o equilíbrio mental e emocional, uma vez que reativa sentimentos positivos que contrapõem-se à carga de emoções negativas à qual somos submetidos diariamente, promovendo um equilíbrio emocional e diminuindo inclusive o risco de depressão.

2 – Sim, de uma maneira positiva. Infelizmente, como fato natural da vida, chega um momento em que tudo o que resta são lembranças. São situações em que, seja qual for o motivo (idade avançada, doença irreversível, situações altamente debilitantes), o indivíduo já não cria mais expectativas inatingíveis e não tem como mudar seu próprio destino, o que reverte-se em inevitável frustração e sensação de impotência. Assim, apega-se a antigas lembranças como último recurso para obter alguma dose de energia vital e seguir em frente, enquanto possível, vivendo não “no passado”, mas “por causa do passado”. Outro exemplo clássico cabível aqui são pessoas que tiveram fama e êxito, poder, posição de liderança, e no fim da vida encontram-se incapacitadas para cuidarem de si próprias ou realizarem qualquer feito além da própria sobrevivência. Geralmente, esses indivíduos vivem rodeados de fotos, recortes de jornais e outros itens que façam alusão às suas realizações passadas, sendo que terão estímulo e energia para viver enquanto durar sua capacidade de recordar. Tudo isso vale também para pessoas ditas “comuns”. Por este motivo, pessoalmente sou a favor de conceder-se o “direito certo” de idosos conservarem seu espaços (residências, quartos, etc.) como quiserem, intactos, com todas as reminiscências que desejarem. Afastarem-nos de suas recordações, suas referências, significa contribuir para a antecipação do fim de suas vidas.

3 – Sim, de uma maneira negativa. Até aqui falei sobre os benefícios proporcionados pelas boas lembranças, capazes de trazerem novamente à tona bons sentimentos e contribuírem para o equilíbrio emocional. Entretanto, se por um lado a nostalgia é saudável, desde que mantenha-se um equilíbrio com o mundo contemporâneo – o mundo no nosso “tempo atual” -, pelo outro lado, quando uma pessoa adulta, em plena capacidade física e mental – ao menos do ponto de vista neurológico – tem grande dificuldade ou até mesmo incapacidade de relacionar-se com qualquer coisa que não diga respeito a sua infância ou adolescência, às vezes até falando, comportando-se e enxergando-se como adolescente, isso pode ser sinal de problemas. Pode significar que essa pessoa recusa-se, inconscientemente, a assumir a vida adulta e todas as suas responsabilidades. No universo psicanalítico dá-se o nome de fixação, quando o indivíduo não avança de fase em sua evolução psicossocial, ou regressão, quando o indivíduo retorna a um estágio anterior de seu desenvolvimento psicossocial. Nesse caso, aconselha-se tratamento psicoterapêutico, mas não cabe aqui nos estendermos neste assunto.

Fliperama antigos, nostalgia dos anos 80 e 90

Para concluir, quero enfatizar que, como escrevi na introdução deste texto, trata-se de um convite a uma reflexão. Grande parte do que expus, na verdade quase tudo, representa minhas opiniões pessoais e estão bem distantes de serem verdades absolutas e inquestionáveis. Fica então o convite para a discussão.

Qual é a sua opinião sobre o assunto? Vamos conversar? Participe escrevendo na área de comentários da coluna.