[intense_blockquote]“Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também! Leve Vila Rica”[/intense_blockquote]

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As frases acima eram o encerramento de um comercial de cigarros exibido em 1976, estrelado por Gérson de Oliveira Nunes, o “Canhotinha de Ouro”, meio-campo da seleção brasileira de futebol campeã mundial em 1970, considerado por muitos como “o cérebro” daquela equipe. Em sua carreira desportiva, Gérson teve passagens em grandes clubes, como Flamengo, Botafogo, São Paulo e Fluminense. Contudo, a partir desse comercial, seu nome passaria a ser citado por motivos muito menos nobres que seus feitos no campo.

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O slogan “Leve vantagem você também!” acabou virando lema de vida de muitos brasileiros, sintetizando a cultura de “se dar bem” custe o que custar, ou, mais especificamente, às custas de outras pessoas, empresas, órgãos públicos ou privados. Existe um sentimento de que se há uma oportunidade de levar vantagem, mesmo que de forma indevida, e a pessoa não aproveita, está sendo otária. Essa espécie de cultura disseminada no nosso território passou a ser conhecida como “Lei de Gérson”, estigmatizando para sempre o atleta. Exclusividade brasileira? Certamente não, mas lamentavelmente é aqui que sentimos de perto esta “lei” em pleno vigor até os dias de hoje em todos os setores da sociedade.

Gérson de Oliveira Nunes

Após esta pílula de conhecimento histórico, esportivo, publicitário, psicossocial e cultural, você talvez esteja perguntando mentalmente: “Tá, Sílvião, mas o que isso tem a ver com diversões eletrônicas e com o assunto que você começou a desenvolver no mês passado?”.

Bem, eu explico. Comecei descrevendo a origem da “Lei de Gérson” para embasar o relato que farei a partir de agora a respeito do que aconteceu no ramo durante os anos 70 e 80 e culminou na saída – ou melhor, abandono! – do país, da maior empresa de máquinas de diversões eletrônicas atuante aqui naquelas décadas.

Sei que muitos que acessam este portal e acompanham outras atividades da WarpZone conhecem bem este mercado, e talvez até tenham trabalhado ou ainda trabalhem nele. Porém, acho importante explicar primeiramente como é sua operação, para aqueles que não estão familiarizados, e introduzir alguns conceitos essenciais.

No jargão do segmento de diversões eletrônicas, o tipo de operação das máquinas é chamado de coin-op, uma abreviação em inglês de “coin-operated machine”, ou seja, máquina operada por moeda. Em países onde a inflação é muito baixa, ou simplesmente não há inflação, as maquinas são de fato acionadas por moedas. Já em países com inflação – como o Brasil -, a operação é por ficha, pois de outra forma seria necessário fazer trocas e ajustes constantes no conjunto de acionamento a cada mudança de preço. Naturalmente, nos dias atuais há outras formas de acionamento, como por cartões, mas estou usando o exemplo das fichas para ilustrar o que ocorria até o início dos anos 90.

Fichas de fliperama, imagem da Internet (Divulgação)

Existem diferentes esquemas de operação comercial, envolvendo de duas a N camadas: a empresa proprietária das máquinas, os distribuidores, os operadores, suboperadores, e os pontos de jogos.

Pontos de jogos são as casas de diversões eletrônicas – fliperamas -, os bares, ou qualquer estabelecimento comercial em que uma máquina esteja operando. Distribuidores são empresas que vendem, alugam ou fornecem máquinas em regime de comodato. Podem ser os proprietários das máquinas ou atuarem abaixo deles. Operadores, por sua vez, são empresas que distribuem as máquinas entre os pontos, além de fazerem a prospecção de potenciais novos pontos, auxiliarem no trabalho promocional, manutenção, entre outras atividades. São a “ponte” entre os pontos e os proprietários das máquinas. A atuação dos operadores é geralmente definida por meio de divisão territorial tratada entre eles próprios. Há distribuidores que também são operadores, e algumas vezes a cadeia conta com suboperadores, dependendo da extensão territorial da operação.

Com relação ao faturamento, ele é dividido entre as partes, em uma periodicidade e porcentagens acordadas. Por exemplo, em um esquema simples envolvendo a empresa dona das máquinas, um operador e o ponto, pode ser tratada uma divisão 30/35/35, através da qual a empresa proprietária fica com 30%, o operador com 35% e o ponto com 35% do faturamento de cada máquina. Estes modelos de operação são empregados até hoje, sendo que talvez os métodos de apuração de faturamento tenham sido parcialmente modificados em função de novas tecnologias.

Nos anos 70, 80 e até início da década de 90, período que estamos abordando, o controle de faturamento era feito por meio de contadores mecânicos instalados nos gabinetes das máquinas, semelhantes aos hodômetros dos carros mais antigos ou ao medidor de consumo de água em nossas casas. Esses contadores eram acionados pela passagem das fichas. Dentro da periodicidade tratada, geralmente no final do mês, eram preenchidos relatórios com os dados apurados a partir da leitura dos contadores nos pontos de jogos. Os montantes faturados eram repassados de baixo para cima, ou seja, do ponto até a empresa proprietária das máquinas, de acordo com as porcentagens acordadas. Pois bem, era neste ponto que a “Lei de Gérson” era aplicada!

Arcades/Fliperamas antigos, imagem da Internet (Divulgação)

A desonestidade podia ocorrer tanto no repasse do ponto para o operador, quanto do operador para o proprietário das máquinas ou distribuidor.

Da parte do ponto, bastava preencher um relatório com faturamento menor, ou seja, contagem menor de fichas, nos casos em que a leitura dos contadores não era feita por um funcionário do operador. “Ah, mas então quando a leitura era feita pelo funcionário do operador não tinha como haver fraude, né?”. Infelizmente, tinha. Os contadores, fossem eles com acionamento mecânico ou elétrico, podiam ser adulterados com relativa facilidade, pouco tempo antes do dia previsto para a verificação pelo funcionário do operador. Além disso, dependendo do grau de “honestidade” do funcionário do operador, essa intervenção no contador nem era necessária, bastando um “acerto por fora” entre as partes.

Da parte do operador, a fraude acontecia também no preenchimento do relatório entregue à empresa proprietária das máquinas, com dados inferiores de faturamento. A possibilidade de checagem feita pela empresa proprietária das máquinas diretamente nos pontos de jogos era muito remota, devido a inúmeras dificuldades operacionais. Na verdade, esse tipo de acompanhamento de perto, ou auditoria, foi implementado nos anos 90, e estará presente na terceira parte desta nossa conversa!

E será que havia fraudes em conjunto, levadas a cabo entre operadores e pontos, em prejuízo da empresa proprietária das máquinas? Sim! Como você vê, as possibilidade de aplicação da “Lei de Gérson” eram infinitas!

Mas o lado obscuro do setor não estava relacionado apenas à sonegação de repasse correto de faturamento. Também havia muita corrupção de agentes públicos de diversos órgãos fiscais e policiais para que pontos continuassem operando sob “vistas grossas” sem a devida distância de escolas, com venda de cigarros a menores, bancas de jogo do bicho, jogos de azar e toda sorte de ilegalidades e práticas não recomendadas. Como consequência, as marcas dos fabricantes de jogos estampadas nas máquinas acabavam também sendo associadas a uma atividade tão mal vista pela opinião pública.

A criançada se encontra nos arcades, imagem da Internet (Divulgação)

Agora, vamos dar nomes aos bois com um exemplo emblemático. Nos anos 70 e 80, a empresa líder em diversões eletrônicas operante no Brasil era a Taito, primeiramente sob o nome de sua representante Trevo e depois oficialmente como Taicorp, usando o nome de fantasia Taito. Esse tipo de operação em duas etapas era muito comum, a fim de contornar-se uma legislação que impunha certa restrição de participação de empresas de capital estrangeiro na sociedade de empresas brasileiras.

Também devido a imposições legais que determinavam uma reserva de mercado de produtos de informática, categoria na qual as máquinas de diversões eletrônicas enquadravam-se, os jogos eram fabricados em território nacional, ou adaptados. Foram feitos muitos clones de jogos estrangeiros com adaptações para o nosso mercado. Quem está na minha faixa de idade, em torno dos 50 anos, deve ter viva na memória a frase “Eu sou o Cavaleiro Negro à procura de um desafio”, que era cantada pela Cavaleiro Negro, pinball clone da Black Knight, da Williams. Existia até mesmo a máquina Oba Oba, inspirada nas mulatas do Sargentelli, outra referência que só quem tem a partir de 50 anos entenderá.

A Taito, além de possuir uma linha memorável de jogos em várias categorias, tinha uma rede própria de lojas. Imaginem a quantidade de empregos diretos e indiretos que essa empresa gerou!

Arcades e máquinas de pinball, imagem da Internet (Divulgação)

Curiosidades: a empresa tinha sede no Japão, mas era fundada por um russo; o nome Fliperama (com dois pês na grafia original) acabou virando sinônimo de casa de diversões eletrônicas e é marca registrada da Taicorp.

Curiosidades não faltam na história dessa empresa e de seus produtos, mas preciso encurtá-la e dar um salto brusco para a parte que não desejaríamos que acontecesse. Na metade da década de 80, precisamente em 1985, a empresa encerra suas atividades do nosso país. A explicação para o público em geral foi a de que ela havia fechado as portas por não conseguir fazer frente à concorrência com os videogames domésticos e outras formas de entretenimento doméstico em franca popularidade, o que tinha causado uma redução substancial do faturamento, pois o público já não saía tanto quanto antes para procurar diversão fora de casa.

Nos bastidores da indústria, contudo, a história que se conta é outra. Acostumados a mercados como o japonês, por exemplo, onde a “Lei de Gérson” não imperava com tamanha intensidade, os administradores da Taito preocupavam-se pouquíssimo com o controle rígido do faturamento de suas máquinas, confiando nas informações que eram repassadas pelos operadores e gerentes de suas lojas.

Quando enfim começaram a desconfiar que havia algo de errado, o prejuízo acumulado devido a fraudes já estava em um nível irrecuperável, a ponto de decidirem encerrar todas as atividades imediatamente, deixando literalmente sua história aqui para trás. Digo literalmente porque as máquinas foram abandonadas com quem as estava operando. Elas permaneceram ativas enquanto havia peças de reposição no mercado, sendo que, posteriormente, passou a acontecer o que chamamos de “canibalização”, que é utilizar peças boas de diferentes equipamentos inoperantes para consertar ou montar outra. Atualmente, máquinas Taito em perfeito funcionamento são itens raros e muito valorizados.

A história continua na próxima coluna, imagem da Internet (Divulgação)

A história espalhou-se como fogo entre as grandes empresas do ramo, e o Brasil passou a ter péssima reputação associada a corrupção, desonestidade, desorganização e excesso de burocracia – o que também favorece a corrupção, em função da busca de alternativas não oficiais para soluções mais rápidas. Em suma, nosso país era considerado um local não confiável para investimentos no setor de coin-op.

Somente quase uma década depois, em grande parte com o estímulo da abertura de mercado promovida no governo Collor para a entrada de produtos tecnológicos estrangeiros, e com um verdadeiro arsenal de lições aprendidas, as empresas decidiram reavaliar riscos e benefícios potenciais e arriscar-se a empreender novamente no Brasil, com toda uma estratégia de reformulação mercadológica para lidarem tanto com o “lado podre da laranja” da indústria, quanto com os desafios de mudança da imagem da atividade junto à opinião pública, desgastada devido a inúmeros fatores descritos na primeira parte desta série de relatos.

Esta história continua! A chegada de grandes empresas nos anos 90 e todo o trabalho desenvolvido para a implementação de transformações radicais no setor será o tema da nossa próxima conversa! Até lá!